O juiz desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra José Avelino Gonçalves tem, nos últimos anos, passado horas no sótão do Tribunal da Covilhã explorando um arquivo morto de processos amontoados, cobertos de pó, de folhas amarelecidas e sem qualquer organização. Pegou em alguns e transformou-os em crónicas publicadas em livro, numa escrita própria inspirada em Camilo Castelo Branco. Com sua permissão transcrevo aqui uma delas, resultado de um processo com gentes do Casteleiro datado de 1852.
O juiz eleito do Casteleiro e a lenda do beijo eterno
A povoação do Casteleiro está fundada num vale. A Vila de Sortelha está à distância de uma légua, observa-a do alto do seu castelo medieval. As serranias protegem-na, aliviam-na da dureza do frio invernal. Os trigos e sobretudo os centeios, mas também os linhos, cultivam-se por tapadas, veigas cercadas e terras distribuídas por folhas. É abundante a produção de linho que se faz nas serras, mas também nos ribeiros. Fazem-se enseadas onde se semeia linho “secadal”.
José Maria anda embeiçado pela mulher do José Gonçalves Churro. Moçoilo forte, cabelo negro, esplendoroso, a deslizar pelos soberbos ombros, nascido na sede do concelho, mas criado nas leiras que escorregam pelas Serra d’Opa e da Preza. Domina a arte da moedura de cereais, aprendida com o avô Francisco no moinho da família. Aos dezoito anos era já um perdido, brejeirava pelas margens da ribeira, à cata das meninas, que se banhavam aos gritinhos nas águas límpidas e frias da ribeira.
A Joaquina Chula é mulher de carnes cheias, muito bem conservada, de apetite! Levava, quase diariamente, com as manápulas sebentas do marido. Os ciúmes enlouqueciam-no! Um bruto, um animal, que a trazia “debaixo d´olho”! Nas festas e romarias fazia cenas, quebrava ossos aos atrevidos que com o “olho gordo” iam alimentando fantasias!
O Zé Maria herda o moinho da ribeira da Nave, com a sua pedra secular coberta de fetos e musgo e a pequena represa. Adora o murmúrio suave da água, o chiar da roda e a sombra recolhida das grandes árvores. Um local edílico, delicioso, onde ainda se apanham alguns barbos à mão. Joaquina é sua freguesa, leva-lhe o cereal para moer. Adorava ouvi-lo, escutava-o de olhos baixos, pasmada de se achar ali tão só com aquele moço tão robusto, salpicado de farinha, um contador de estórias bonitas. Fazia-a rir. Ele adorava, achava-a mais linda e apetitosa. A mulher casada treme no pedestal da sua virtude, não resiste às investidas do moço bonito. Trigueira, com um sinalzinho fofo na bochecha, rende-se aos encantos do moleiro. Começam os encontros, os primeiros beijos. Acarinham-se no aconchego das rochas a que o povo chama do “Beijo Eterno”, para selar o amor para toda a vida! Como a lenda, que dizem, deu origem ao lugar do Casteleiro.
Manuel d´Almeida, o juiz eleito da freguesia, tinha os seus admiradores. Pouquíssimos pela amizade e competência! Um ser feroz e sanguinário que sofre de autoritarismo! Todas as cenas de horror que se têm praticado no Casteleiro têm a mão do dito juiz. Contam-se algumas estórias, como a do filho do ferreiro do Sabugal, que na romaria da Nossa Senhora da Póvoa fora esfaqueado. O assassino era familiar do juiz eleito. Abafa-lhe o processo, não levanta o respetivo auto de notícia! Com meia dúzia de reis e uma pipa de vinho compra o silêncio das testemunhas. Não prende o matador e esquece-se de comunicar ao juiz ordinário de Sortelha.
O recebedor de impostos de Sortelha é a sua mais recente vítima. Conta-se em duas ou três palavras. O mês de Agosto queima, Sortelha esconde-se na sombra das suas muralhas. Cândido Martins Negrão marcha para o Casteleiro para intimar o juiz eleito. Tinha a notícia que havia adquirido algumas propriedades no sítio da Ribeira e do Enxertado. Não paga a sisa! O devedor acolhe-o de maus modos. “– Sim senhor, não quer mais nada do que isso? “Eu já te dou as certidões!” Injuria-o tremendamente, ameaça o servidor da fazenda!
O juiz eleito trazia alguma gente contratada na sua laje da Ribeira. Pergunta aos seus malhadores – “Se não havia quem quebrasse as pernas aquele diabo?” Que lhes pagaria um quartilho de vinho. Logo dois dos serviçais saíram ao caminho do Negrão, que no regresso à sede do concelho, aproveitava para descansar no souto do António da Cunha. Leva muitas pancadas. Retira-se muito maltratado para casa do reverendo vigário, onde foi curado.
O Inverno de mil oitocentos e cinquenta e dois corre muito primaveril, os amantes querem fugir para a cidade de Castelo Branco. Joaquina sabe que o adultério de mulher é punido com degredo temporário. Já se falava “à boca cheia”, o enredo amoroso percorria as ruelas do lugar, entrava nos portais das beatas. Que a Joaquina do Churro andava embrulhada com o moleiro. O marido enganado torna-se a chacota do povo! O padre Joaquim Leal sabia-o em confissão, tentara “pôr tino” na cabeça da mulher perdida. O marido já ameaçara que apresentaria querela e acusação, quer mandar enforcá-la!
O marido enganado suplica os bons ofícios do juiz eleito. Os amantes estavam acoitados na casa do moinho. Comiam-lhe o seu presunto! Que aí deixara a cocar dois bons amigos de Benquerenças.
A tardinha escurecia, o frio entranhava. O regedor estava acamado com a sua terrível gota. O magistrado eleito leva os cabos de polícia, ordena a prisão do prevaricador e da mulher adúltera, sem precedência de mandado e observância das formalidades prescritas na lei! Tinha uma dívida para com o traído. Negócios de erva santa que crescia abundantemente na fazenda do António Gonçalves, no sítio da Cascalheira, limite do povo de Quarta Feira. Era preciso fazer cuidados. Os meirinhos João do Couto e António Pessoa da Silva da Administração dos Tabacos já andavam a rondar!
Apanha os malvados em trajes menores e a petiscar o presunto e as morcelas do marido chifrudo. A Joaquina lançava-se à presa masculina de uma forma lasciva! Uma devassa! Faz conduzir os presos para a praça do lugar. O juiz eleito vociferava – “Andem lá cães que vos apertarei!”. Traz uma pequena moca na mão. Manda-os recolher a casa particular, cada um em sua divisão, devidamente guardados. Castigam-nos, não lhes servem a ceia! Ainda tinham a barriguinha cheia!
A manhã está frigidíssima, entranha-se no corpo e na alma. O povo vai enchendo a praceta, não arreda pé! A testemunha Lobo foi aí atraída pela novidade do caso. O mestre dos meninos é arrancado ao tálamo conjugal. Estremunhado e a resmungar passa às mãos do Manuel d´Almeida uma palmatória! Determina que o manso desse palmatoadas aos “amiguinhos”. Ordena que a Joaquina entregasse a mão a seu marido. A mulher encolhia-se, chorava, pedia. – “Ai homem da minha alma! Deixe-me por amor de Deus!” O Almeida estava atento, resmungava. – “Ah! Agora já há marido?! Bate para baixo, não tenhas dó! O José Maria apanha também a sua dose. As manápulas do Churro batem forte. As pessoas burburinham, dão gritinhos, nunca tinham visto igual. A Feliciana dos “Padres” resguarda as mãos geladas no seu xaile. Pensa no quão perigoso é pensar nos santinhos! Uma vida de escândalo e imoralidade grassa na mente de tantos homens e mulheres. Oferecem-se os amantes em espectáculo em uma praça pública!
A autoridade ruma a Sortelha, que fica a pouco mais de uma légua. O Zé Maria alomba com o resto do presunto! Vale como prova do delito e do “bacanal”. O juiz eleito vai-lhe aconchegando os costados. Um bárbaro!
O velho castelo medieval impõe-se ao casario de forte pedra granítica. São arrecadados na cadeia do julgado. Construída com a pedra retirada dos muros da Vila. Assim se poupa alguma despesa! Só os garrotes da Cadeia custam 12.300 réis. Na sessão de 26 de Janeiro de 1844 determinou-se: (…) visto ter-se arrematado a obra de pedraria da Cadeia, e casa da Câmara desta villa, com as condições de sair dos muros desta villa a pedra para tal obra, por nisto se poupar alguma despesa ao concelho e haver alguns pedaços de muro que devem… acordarão que a pedra fosse tirada dos ditos muros, aonde convir e menos falta fizer (…). Os presos jazem esquecidos nas pedras frias do cárcere. São soltos sem haver processo, sem uma notazinha de culpa!
Cândido Negrão dá suspeição do juiz ordinário de Sortelha. Firmino da Paula Pinto Tavares não pode julgar o feito. Manuel d´Almeida, contra quem o delegado requer querela, é feitor da Casa de Thomaz Ignácio, seu cunhado e inimigo declarado da vítima. Fala-se que as autoridades locais andam mancomunados! Nas últimas eleições o juiz eleito convidou o Feliciano da Costa Neves para dar umas bordoadas no Henrique de Sousa Homem. De tudo isto há prova, não obstante terem ameaçado testemunhas!
A Covilhã é a cabeça da Comarca. Fica nas encostas da Estrela, longe deste amiguismo. O processo passa às mãos do juiz Emygdio Jozé da Silva, que desanca fortemente no juiz eleito! Haverá alguém, quanto mais um juiz eleito, que ignore merecerem os presos todo o favor e protecção da lei? A Joaquina enquanto presa não era a mulher do José Gonçalves Churro! A boa administração da Justiça, a Causa Pública e a Humanidade não podem sofrer, nem tolerar semelhantes arbitrariedades e violências por parte de um empregado público. O santuário da Justiça não pode continuar à mercê destes esfoladores da lei!
Manda prender e remover o juiz eleito para a cadeia da Covilhã. Porque na Comarca não se publica folha periódica alguma, a sentença condenatória é escarrapachada, sob a forma de edital, no sítio mais público da praça do Casteleiro. A Joaquina regressa aos braços rudes do marido e o José Maria volta para o moinho da ribeira da Nave e para suas farinhas. Já com saudades dos petiscos!
Covilhã, Páscoa de 2021.